paishabilitar/ Novembro 9, 2020/ Diário de Aveiro, Uncategorized
Eu não sou assim! Eu prometo, quer dizer, eu juro!
Crónicas inclusivas: Uma parceria Pais Habilitar e Diário de Aveiro
Olá, eu sou o M. Tenho 10 anos. Sei que parecem poucos, mas eu já vivi muito, e depressa! Sou muito sociável, até dizem que “falo pelos cotovelos”! Gosto muito de correr, brincar, saltar. Dizem que “não paro quieto”. Mas eu paro! A ver vídeos no telemóvel! As imagens são tantas e mudam tão rápido (e adoro tanto!) que não me aborreço. Por isso dizem que “só gosto do que me interessa”. Não gosto muito de jogar à bola, sou um pouco desajeitado. Também costumam dizer que “estou no mundo da lua”, porque nunca ouço à primeira. Eu até ouço, mas esqueço-me do que me disseram (não é por mal, prometo!). Isso obriga os adultos a repetirem várias vezes a mesma coisa e a repreenderem-me constantemente, o que os deixa um bocadinho chateados (e a mim, um bocadinho triste!).
“Oh M. não mexas aqui, não toques ali, para quieto, estás a ser mal-educado…”, são as frases da minha vida! A minha mãe percebe que sou um bocadinho esquecido, diz sempre que “deixo tudo em todo lado”. Tens razão mãe, esqueço-me dos livros e dos casacos. Mas não é por mal! O meu professor diz que “tenho bichos carpinteiros” porque não paro na cadeira. Também já me disse dezenas de vezes para colocar o dedo no ar antes de responder, mas eu não aguento e respondo antes de ele acabar a pergunta (não é por mal professor, prometo!).
Digo as coisas sem pensar. O que os outros pensam e não dizem eu digo! Se fosse um adulto chamar-me-iam frontal, mas o meu médico chama-lhe impulsividade.
E tem razão. Porque às vezes digo o que penso a pessoas que nem conheço e isso faz-me parecer mal-educado. Mas não sou, prometo! O meu cérebro é que é uma espécie de “montanha russa”! E quando penso que não devo dizer algo já disse! Mais um motivo para me repreenderem… É mesmo difícil controlar. Às vezes sinto que “não sou dono de mim mesmo”, porque não controlo o que faço! E quero que os outros percebam que não faço por mal e que me esforço por fazer melhor, mas eles não entendem. Acho que pensam que não me esforço (se eles soubessem!). Como gosto tanto de falar e não me controlo, por vezes intrometo-me nas conversas ou nas brincadeiras dos outros (não é por mal, prometo!). E, na maioria das vezes, não consigo esperar pela minha vez. Falo sempre antes de tempo ou jogo antes do tempo (é sem querer, prometo!). Os meninos lá da escola já não querem brincar comigo porque “não sei brincar” (mas eu não tenho culpa, prometo!). Os adultos não querem ficar comigo porque “não respeito as regras” (mas eu respeito, prometo!). Estou sempre a desiludir toda a gente. Eu só quero que gostem de mim e que me elogiem, como fazem com os outros meninos! Os meus pais gostam de mim como sou, eles adoram-me! E mesmo não entendendo porque sou assim, tentaram descobrir como me podiam ajudar. Foram eles que me levaram ao médico! Ele percebeu mal entrei no consultório! Acha que sou bem-educado (como adoro ouvir isso!) e sabe que eu não tenho culpa de tudo isto (que alívio!).
Explicou-me tudo o que se passa comigo, que uma parte do meu cérebro que não funciona como nas outras pessoas. Esse maldito é o culpado! Eu sabia que não era eu! Eu não sou assim! O meu médico explicou-me que eu tenho uma Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (um nome tão comprido que quase me esqueço a meio!), uma doença. É como ter diabetes ou uma doença do coração. Porque é que esses meninos são tão bem tratados e eu não? Temos todos uma doença, só que a minha é no cérebro!
Parece que os adultos pensam que “doença no cérebro” não é doença (sei tão mais do que eles e ainda sou uma criança!). Por isso escrevo-te a ti, adulto, para que tentes entender melhor os meninos como eu. Não deixes que se sintam tristes ou incompreendidos. Porque a culpa não é deles, eles não são assim! Eu prometo, quer dizer, eu juro! |
Telma Luís
Médica Interna de Pediatria